sexta-feira, 27 de julho de 2012

Sei que lembro, memórias de letramento


Sei que lembro...


António Abade da Luz


Lá estávamos nós mais uma vez reunidos a volta da mãe para escutar com muita atenção os contos do mundo imaginário, de importante significado na vida de uma criança que começava a ter os primeiros contatos com o mundo.
O primeiro contacto que tive com o escrito oral, foi através da minha, sendo solteira, mãe de seis filhos, frutos de relacionamentos fracassados em virtude de querer ser sempre uma boa mãe e proteger os filhos dos maus tratos.
No ambiente descrito não está presente o meu primeiro irmão, porque vivia com a sua avó, e o mais novo ainda não tinha nascido. A que está em cima da cama é a minha penúltima irmã. A mãe não sabe ler nem escrever, mas todas as noites em que o jantar atrasava, ela sentava na cama e nós sentados no chão na sua frente, começava a contar-nos histórias engraçadas e fantásticas que nos faziam sentir bem ao mesmo tempo que nos dava arrepios e sensações de medo, por causa de alguns personagens monstruosas evidenciados ao longo do conto.
Eram sempre histórias de tradição oral, espelhando as limitações dela por não saber ler nem escrever. Mas, quase sempre usava expressões da língua portuguesa, que embelezavam ainda mais as sessões noturnas de história história.
Assim, ia eu tendo os primeiros contatos com a escrita oral, embalado e fascinado pelas histórias da minha mãe. Essas sessões, tinham como finalidade nos manter acordados enquanto o jantar ia sendo preparado, prevendo o atraso de algumas horas para ser servido, ultrapassando as vezes às 23:00 da noite.
Ninados, pela voz meiga da minha mãe, muitas vezes acabávamos por adormecer sem jantar. Logo, a meio da noite, levantávamos da cama e dirigíamos à mesa, na penumbra (luz turva do candeeiro de petróleo) e comíamos a refeição.
Depois, dirigíamos para a cama e continuar o sono tranquilamente. Pois, a ideia de dormir sem jantar não nos agradava, porque o cabo-verdiano diz sempre que ninguém não pode dormir de barriga vazia.
Durante a exposição das histórias da minha mãe, conseguia notar através do seu semblante, as angustias, tristeza e revolta de uma mãe, massacrada pelas intempéries da vida, impostas pelo decurso desventurado de uma mulher desamparada. Embora, fizesse de forte e tentar disfarçar os males da sua alma, sempre entendia que ela sofria muito para manter os filhos. Todos os dias, lutava no duro, em busca do pão de cada dia, “comendo o pão que o diabo amassou”, para custear as despesas da casa sozinha. Era o rosta da mulher cabo-verdiana, figura sofrível, abandonada à sua própria sorte, vítima do egoismo desnaturado e saboreando dia após dia a solidão, sua companheira fiel.
Lembro-me como hoje, que na minha casa não havia materiais escritos. Havia apenas o saquinho de fazenda da minha irmã mais velha, que tinha entrado na escola pela primeira vez, cujo recheio era apenas um caderninho de dez folha, o mais barato de então e o mais acessível para os desfavorecidos. Tinha também um lápis de grafite e alguns pedaços de lápis de cores, ofertas de colegas amigos, cujos pais conseguiam substituir-lhes os materiais anualmente. Então, os que não tinham nada, recebiam os restos daqueles mais abastados. Assim, nem no caderninho da minha irmã, eu tinha acesso para ver os rabiscos que fazia na escola, porque, era costume guradar bem os materiais dos que andavam na escola, para não serem danificados pelos mais novos e inesperientes. Quando raiava o dia, ainda bem cedo, por volta das 6:00 am, a minha mãe saía para o trabalho e deixava quase sempre com a minha irmã mais velha cerca de 20$00, para o pequeno almoço. O valor era distribuido assim: 10$00 de pães (sendo cada pão 2$50), 5$00 de leite e 5$00 de açúcar. Almoço? Era uma incógnita, talvez...
Hoje, compreendo que valeu a pena tanta luta, sofrimento e determinação. Pois, sei dar valor a cada coisa desta vida por insignificante que pareça e no meu léxico não existe a expressão “desistir”, mas sim, esperança, esperança, esperança...

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